A carreira de Escalhão (A formiga no carreiro)
Há coisas que merecem ser imortalizadas... E apresentado que está o senhor do pão e as gentes que o sustentam, urge retomar o fio à meada e apanhar a carreira de Escalhão que está quase a partir...
A carreira de Escalhão é de facto o autocarro que serve de meio de transporte a uma mão cheia de ilustres desconhecidos que regressam a casa quase todos os fins-de-semana.
Podia muito bem identificar-se como o expresso que faz a ligação de Lisboa até à vila de Escalhão, mas dadas as enumeras terras onde passa e as características da viagem em si, é preferível preservar o conceito de "Carreira de Escalhão"
Todas as semanas acabam por ser desgastantes, e mesmo que o trabalho não tenha sido muito acabam sempre por emergir todas as pequenas tensões acumuladas características do dia-a-dia vivido entre a comunidade estudantil. Então esta carreira funciona como a primeira fase do fim-de-semana no que diz respeito à reposição de energias.
Não sei se é pelo facto de associar este como o transporte para as origens, se por ser uma Janela panorâmica para os campos envolventes, sempre deslumbrantes mesmo que a “tropeçar em barrocos” , ou se esta carreira tem mesmo magia. O facto é que constitui uma excelente terapia.
E apesar de todas as contrariedades, há dias que parece que regressamos aos nossos primeiros estádios de desenvolvimento onde acreditamos que o mundo gira mesmo à nossa volta e as coisas se conjugam a nosso favor.
Como que adivinhando a minha quase desesperada ansiedade por chegar a casa e para meu espanto, por obra e graça do "Espirito Santo", o condutor decide atalhar caminho.
E tudo o que eu mais queria era, FINALMENTE e depois de todos os imprevistos, experimentar a minha mais recente tecnologia importada dos States. Com um brinquedo novo, havia que chegar a casa quanto antes, jantar, e enfiar-me no meu buncker particular a desventrar e devorar o dito equipamento.
O meu bom senso diz-me que a decisão do chaufer deve constituir uma rara excepção à regra, visto que poderia esporadicamente estar uma pessoa num qualquer ponto de paragem, cujo estado de espírito naquele momento poderia não ser o mais agradável pela longa espera, se comparado com o meu.
Mas aquele não era um veículo qualquer. Este autocarro que nuca iria passar, tratava-se de facto daquele meio de transporte perdido no tempo que dá pelo nome de "Carreira de Escalhão", e hoje tinha que chegar mais cedo ao seu destino porque os DEUSES lá no Olimpo assim o determinaram…
De facto este condutor é mesmo uma pessoa suigéneris… como muitas outras que se cruzam ao longo do tempo pelas nossas vidas.
Este procura saber sempre das novidades e trás noticias frescas lá da terra a estes miúdos, que por força das circunstâncias se vêm obrigados a ir estudar para a cidade. Por lá passam semana após semana para obter a formação escolar indispensável para ir mais além que os seus pais, que na maior parte dos casos vive daquilo que o campo e a generosidade da natureza lhes concede.
Acredito que estes miúdos se sintam quase em casa mal entram na carreira, tal é o convívio e boa disposição que se vive. E não fazendo da miudagem seus criados, lá lhes vai pedindo para entregar as encomendas na oficina, na farmácia ou no quiosque, aligeirando assim o tempo da viagem. E os miúdos colaboram com ele com grande entusiasmo.
Há ainda os idosos que lá vão falando das vinhas, da pedra que caiu do céu e quase estragou as colheitas, dos terrenos que finalmente começam a verdejar e a cevar o gado adelgaçado pela seca persistente.
Só não estão presentes o cabaz com o farnel e o garrafão de tinto... Exigências de uma lei de transportes públicos mais rigorosa que reencaminha toda a trouxa para o porta-bagagem. Também as viagens se tornaram mais rápidas, não havendo por isso necessidade de trazer a bucha para comer na carreira como era habitual até há uma década atrás.
E quando ainda mal nos conseguimos libertar deste carreiro de formigas, alguém tem a ousadia de deitar uma rotina para trás das costas desafiando os mais cépticos. E já na condição homens livres, damos por nós a pensar no bem que sabem estes pequenos momentos, tão distantes dos padrões de exigência social das sociedades modernas.
“A formiga no carreiro
vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo
ao pé de um septuagenário
Lerpou trepou às tábuas
que flutuavam nas águas
e do cimo de uma delas
virou-se para o formigueiro
mudem de rumo
já lá vem outro carreiro”
2 Comments:
Gostei muito do texto!! :)
Ahh, e agr que sei que a carreira de escalhão é uma tão boa terapia para ti, não penses que te vou dar boleia na porcaria do Clio, uma vez que vais ter que me aturar nos próximos tempos!! eheheh
Resta saber se um destes dias a carreira não vai encerrar por falta de "viabilidade económica", como tem acontecido um pouco por todo o país.
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